Pular para o conteúdo principal

Da escravidão ao pós-abolição

Durante mais de trezentos anos, existiu a escravidão negra e africana no Brasil. Tanto pelo comércio como pela sua utilização como mão-de-obra, esta instituição gerou a herança nefasta do racismo, baseada numa ideia de raça hierarquizadora  dos seres humanos com base nos seus caracteres físicos. A ideia de raça que legitima o racismo é uma construção histórica inventada para afirmar relações de poder, e não uma categoria que explica fatos naturais de diferenças dentro da espécie humana.
Sob o argumento da guerra contra o infiel, da maldição dos povos negros africanos e da necessidade da evangelização, a religião quem legitimava a escravidão até o século XIX. Quando a razão passou a dominar sobre a religião e os argumentos religiosos se tornaram insustentáveis, a ciência passou a fornecer as justificativas da escravidão ao hierarquizar biologicamente a humanidade entre raças superiores e inferiores. Ambas serviam aos interesses de poder do branco europeu e legavam ao negro a marca da desumanização.
Embora a crítica à escravidão já operasse na opinião pública ocidental no começo do século XIX, nunca se importou tantos escravizados africanos para o Brasil quanto entre 1808 e 1850. Esta intensificação deveu-se tanto às pressões cada vez maiores da ordem europeia sobre o fim do comércio de escravizados quanto à instalação da família real no Brasil. Maior potência econômica e militar do mundo ocidental à época, a Inglaterra pressionou o Brasil pelo fim do comércio de escravizados durante toda a primeira metade do século XIX. Para se suavizar provisoriamente das pressões inglesas, o Império produziu diversas leis nesse sentido nunca cumpridas. É de onde vem a expressão “lei para inglês ver”. Os traficantes de escravizados foram os homens mais ricos do Brasil até 1850, quando o comércio foi enfim abolido.  
Com o fim do fornecimento internacional de escravizados, a pressão pelo fim da escravidão foi aumentando ao longo do século XIX. Após a Guerra do Paraguai, a questão abolicionista ganhou a opinião pública e os debates políticos. Diversas leis, como a do Ventre Livre e a Saraiva-Cotegipe, foram promulgadas no caminho da abolição. Intelectuais e homens livres negros atuaram intensamente pelo fim da escravidão, atuando inclusive no fomento de fuga de escravizados. Na década de 1880, a principal dificuldade para o fim da escravidão era o direito de propriedade, que deveria garantir indenizações aos senhores de escravizados que o Império não tinha condições de garantir.
Com a assinatura da lei Áurea, em 13 de maio de 1889, a escravidão foi enfim abolida, o que não significou a garantia de direitos aos negros. Não foram promovidas políticas públicas para garantir a integração do negro à sociedade civil, acesso à educação, moradia e emprego. Vale dizer que ao final do século XIX, a ideia do embranquecimento aliada ao progresso era dominante entre as elites brancas. O racismo, legado da escravidão  uma barreira e continua sendo uma forte barreira à garantia de direitos à população negra.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Os cortiços e a saúde pública no Rio de Janeiro do século XIX

Ainda nos dias atuais, a palavra “cortiço” é utilizada para nomear habitações coletivas localizadas em casarões, pequenas vilas e sobrados, em que residem diversas famílias sob condições precárias. Geralmente, os banheiros de tais habitações são compartilhados e as condições higiênicas insalubres. Os mais antigos utilizam como sinônimo de “cortiço” a palavra “Cabeça de Porco”. Estalagem. Foto de Augusto Malta, ACGRJ. Barracão de madeira componente da estalagem existente nos fundos dos prédios n. 12 a 44 da Rua do Senado, ano de 1906. Foto de Augusto Malta, ACGRJ. “Cabeça de Porco” era o nome do maior cortiço do Rio de Janeiro em finais do século XIX. Localizado nas proximidades da Estação de Ferro da Central do Brasil, assim se chamava por ostentar um grande portal, em arcada, ornamentado com a figura de uma cabeça de porco. Documentos da época especulavam que este cortiço chegou a abrigar 4 mil pessoas. Em 26 de janeiro de 1893, uma imensa operação de despejo, que ...

As Leis Jim Crow e a segregação institucionalizada nos EUA

"Consistiam as leis Jim Crow em um conjunto de leis que se mantiveram ativas até 1965, com origem nos Estados Confederados da Guerra da Secessão, e que pretendiam promover a divisão igual entre sociedade branca e negra, ou seja, segregação. Em determinados lugares, separavam-se os assentos de ônibus e banheiros, avançando ao apartheid educacional e à proibição do direito ao voto. É no crepúsculo destas leis – e talvez em razão disto – que os movimentos de direitos civis, como os de Martin Luther King e Malcom X, e demandas judiciais, como Brown v. Board of Education, visavam o combate destes segregacionismos." ( PREUSSLER ,Gustavo. Resenha:ALEXANDER,Michelle. A novasegregação: racismoe encarceramentoem massa. São Paulo:Boitempo, 2018, 376p.Argumenta JournalLaw, Jacarezinho – PR,Brasil, n. 29, 2018, p.411-414.) Imagens do tempo da segregação racial nos EUA

Código Criminal de 1890 - A criminalização da cultura dos ex-escravizados

DOS CRIMES CONTRA A SAUDE PUBLICA     Art. 156. Exercer a medicina em qualquer dos seus ramos, a arte dentaria ou a pharmacia; praticar a homeopathia, a dosimetria, o hypnotismo ou magnetismo animal, sem estar habilitado segundo as leis e regulamentos:     Penas - de prisão cellular por um a seis mezes e multa de 100$ a 500$000.     Paragrapho unico. Pelos abusos commettidos no exercicio ilegal da medicina em geral, os seus autores soffrerão, além das penas estabelecidas, as que forem impostas aos crimes a que derem causa.     Art. 157. Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilegios, usar de talismans e cartomancias para despertar sentimentos de odio ou amor, inculcar cura de molestias curaveis ou incuraveis, emfim, para fascinar e subjugar a credulidade publica: DOS VADIOS E CAPOEIRAS     Art. 399. Deixar de exercitar profissão, officio, ou qualquer mister em ...