Ainda
nos dias atuais, a palavra “cortiço” é utilizada para nomear habitações
coletivas localizadas em casarões, pequenas vilas e sobrados, em que residem
diversas famílias sob condições precárias. Geralmente, os banheiros de tais
habitações são compartilhados e as condições higiênicas insalubres. Os mais
antigos utilizam como sinônimo de “cortiço” a palavra “Cabeça de Porco”.
Estalagem. Foto de Augusto Malta, ACGRJ. |
Barracão de madeira componente da estalagem existente nos fundos dos prédios n. 12 a 44 da Rua do Senado, ano de 1906. Foto de Augusto Malta, ACGRJ. |
“Cabeça
de Porco” era o nome do maior cortiço do Rio de Janeiro em finais do século
XIX. Localizado nas proximidades da Estação de Ferro da Central do Brasil, assim
se chamava por ostentar um grande portal, em arcada, ornamentado com a figura
de uma cabeça de porco. Documentos da época especulavam que este cortiço chegou
a abrigar 4 mil pessoas.
Em
26 de janeiro de 1893, uma imensa operação de despejo, que contou com a
presença do próprio prefeito da cidade e um imenso aparato judicial, desalojou
dezenas de famílias sem qualquer tipo de indenização, deixando-os apenas com o
que conseguiram carregar e as madeiras que compunham algumas das construções.
Este
acontecimento, elogiado por boa parte da imprensa da época, marcava o apogeu da
influência do discurso higienista na política da cidade. Este discurso atuava
como elemento “despolitizador” das ações da administração pública, na medida em
que buscava legitimar-se numa da suposta neutralidade que a autoridade do
conhecimento médico e científico a dotava. Na realidade, este suposto “discurso
científico” trazia consigo a pressuposição de que a “raça” e a “cultura” europeia
eram superiores às outras raças e culturas.
Desde
a metade do século XIX, os cortiços vinham se alastrando pela cidade do Rio de
Janeiro, principalmente devido ao elevado fluxo migracional que passou a
ocorrer nesta época. Apresentava-se como alternativa mais barata de habitação
para as populações mais pobres. Além de imigrantes pobres, muitos escravizados
de ganho, ou seja, aqueles que possuíam liberdade para trabalhar e entregavam
determinava quantia ao fim do dia para o seu senhor, residiam nestas
habitações. Por este motivo, os donos de cortiços foram acusados, muitas vezes,
de abrigar escravizados fugidos. Não por acaso, o historiador Sidney Chalhoub,
autor de livro clássico sobre o tema, associou o tempo dos cortiços no Rio de
Janeiro às lutas pela liberdade.
Como
vimos nas últimas aulas, a abolição da escravidão, lavrada com a assinatura da
Lei Áurea em 13 de maio de 1888, ao tempo em que fora fruto de lutas por parte
da população negra, seja através da campanha na imprensa, seja através das
fugas e da formação de quilombos, também foi produto de um discurso “científico”,
importado da Europa, que hierarquizava as “raças” humanas e afirmava a
superioridade do branco e do europeu. As teorias que associavam a evolução das
sociedades ao seu branqueamento começaram a circular pelas Américas justamente
a partir de meados do século XIX, entrando na política através do incentivo à
imigração de europeus para o Brasil. De acordo com o discurso higienista e
racista do período, o esforço de branqueamento deveria vir acompanhamento da
melhoria das condições de salubridade da cidade. De fato, a cidade do Rio de
Janeiro enfrentava epidemias de forma quase permanente e as péssimas condições
de higiene dos cortiços também contribuía para este quadro. `Porém, ao invés de
responsabilizar a ausência do poder público na fiscalização sanitária e
habitacional da cidade, o discurso da época culpabilizava o que chamavam de “classes
perigosas”, termo científico que associava o pobre ao vício e à aversão ao
trabalho, visto que seriam pessoas mais propensas aos prazeres do que ao
trabalho. Portanto, higienizar a cidade não significava apenas livrar a cidade
das epidemias, mas afastar dela as “classes perigosas”, ou seja, a população
pobre e negra.
Tabela extraída de Sylvia Damazio, Retrato Social do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, UERJ, 1996. |
Logo,
no último quarto do século XIX, a guerra da administração pública contra os
cortiços tinha como um dos fatores que a animava o afastamento das populações
pobres das regiões centrais da cidade para “civiliza-la”. Este também era o
objetivo de diversos empresários da época, como Vieira Souto e Carlos Sampaio,
empresários que auxiliaram o prefeito Barata Ribeiro no despejo e demolição do “Cabeça
de Porco”. A atuação junto ao Estado dava a estes homens possibilidades milionárias
de investimento, sejam eles imobiliários, seja no setor de transportes
públicos. Afinal, depois muitas tentativas, o “Cabeça de Porto” só foi demolido
depois a empresa em que Carlos Sampaio era um dos diretores ganhar do governo a
concessão para o alargamento de ruas ao redor e a abertura de um túnel no morro
do Livramento, com o privilégio da exploração de uma linha de bondes e o
usufruto de terrenos públicos.
Após
a demolição do mais famoso cortiço do Rio de Janeiro, muitos moradores,
aproveitando as madeiras que levaram, foram construir seus lares no morro que
ficava atrás da habitação. Alguns anos mais tarde, ex-combatentes da Guerra de
Canudos ganharam autorização do Estado para construir suas casas no mesmo
morro, que passou a se chamar morro da Favela.
Estava
em curso o fim da época dos cortiços. Iniciava-se a época das favelas.
Bibliografia:
Abreu, Maurício de, A evolução urbana do Rio de Janeiro, Instituto Pereira Passos, Rio de Janeiro, 2011.
Chalhoub, Sidney, Cidade Febril: Cortiços e epidemias na Corte Imperial, São Paulo, Companhia das Letras, 1996.
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