Pular para o conteúdo principal

Revolta da Chibata ou Revolta dos Marinheiros (1910)


Johann Moritz RUGENDAS, Punições públicas no Campo de Santana, Litografia, 1835.


Os homens eram recrutados para a Marinha de Guerra à força nas ruas ou prisões. Havia também o alistamento de menores pobres, órfãos e desvalidos que eram enviados por pais, juízes e tutores. O governo incentivava esse tipo de alistamento através do pagamento de prêmios aos responsáveis dos garotos.  Entre os receios que afastavam voluntários para o serviço estavam o tempo de serviço militar obrigatório (entre nove e quinze anos), o baixo salário e as violências sexuais. No entanto, as formas de disciplinamento usadas pelos oficiais eram o que maior aversão gerava entre os possíveis candidatos.
Porém, de forma rudimentar, a Marinha de Guerra também oferecia oportunidades de moradia, alimentação, soldo, viagens para conhecer o mundo, alguma especialização profissional e estabilidade na atividade durante 6 a 15 anos (esse tempo era obrigatório. A evasão era entendida como crime de deserção). Não foi à toa que, ao longo do século XIX, escravos fugidos se candidatavam voluntariamente ao cargo de marinheiros, como se livres fossem, e dezenas deles foram encontrados por seus senhores a bordo dos navios da Marinha de Guerra, já recrutados. Numa sociedade em que a cor da pele surgia como uma barreira para conseguir um trabalho, as Forças Armadas poderiam, mesmo com seu vasto manancial de problemas, apontar uma saída para aqueles que não tinham muitas oportunidades.
Desde o século XIX, as Forças Armadas brasileiras resolviam os problemas disciplinares castigando o corpo do infrator. No caso da Marinha de Guerra, o tipo de castigo (golilha, chibata, palmatória, prisão a ferros, solitária) e a quantidade aplicada (dias na solitária, pancadas nas mãos e costas) eram definidos após decisão de um Conselho de Disciplina formado pelo comandante e mais dois oficiais a bordo. Embora castigos semelhantes fossem utilizados em marinhas de guerras europeias – a russa até o início do século XX –, no caso brasileiro era muito difícil dissociar essas punições físicas em marinheiros negros daquelas praticadas legalmente em trabalhadores cativos do último país das Américas a abolir juridicamente esse tipo de disciplinamento.
Os castigos corporais na Marinha foram abolidos no segundo dia após a proclamação da República, em 1889.  Porém, cinco meses depois, diversos conflitos entre marinheiros e as forças da polícia do Rio de Janeiro  levaram o ministro da Marinha a restabelecer os castigos corporais, inclusive o castigo da chibata. As primeiras revoltas de marinheiros começaram a estourar em estados como Rio de Janeiro, Mato Grosso e Rio Grande do Sul ainda na década de 1890. A liderada por João Cândido foi a mais organizada, alcançou maior sucesso que as anteriores e demonstrou a consciência a que os marinheiros haviam chegado.
Dia 22 de novembro de 1910. Faltava uma semana para a posse do presidente eleito marechal Hermes da Fonseca. Após um castigo de chibatadas aplicada a um marinheiro, cerca de mil e trezentos marinheiros se revoltaram, tomando os encouraçados “São Paulo” e “Minas Gerais” e mais duas embarcações. Aos gritos de “Viva a liberdade” e “Abaixo a chibata”, os revoltosos foram matando e expulsando oficiais, sargentos e marinheiros contrários ao movimento. Logo após, apontaram os enormes canhões contra a cidade do Rio de Janeiro e atiraram, vitimando pessoas em duas residências.
Sob a liderança de João Cândido Felisberto e Francisco Dias Martins, os marinheiros, negros em sua imensa maioria, mostraram-se habilidosos na condução das embarcações e na sobriedade com que encararam a luta por melhores condições de trabalho. O uso de bebidas, a prática dos jogos de azar e diversas outras atividades foram proibidas. Afinal, eles estavam planejando essa revolta havia meses e não podiam comprometer seu sucesso.
Não era somente uma revolta contra a chibata. Os marinheiros, em mensagem enviada ao presidente, pelo conjunto de suas reinvindicações, expressavam a consciência de grupo que aqueles homens negros, em sua maioria. De um lado, a chegada dos novos navios exigiu maior quantidade de homens, sobrecarregando o trabalho dos existentes. As irritações e os castigos aumentaram consideravelmente. Além disso, os oficiais receberam aumentos de salários, mas os marinheiros não tiveram a mesma sorte. O aumento dos salários e a criação de uma nova tabela de serviços, que diminuísse o excesso de trabalho, foram duas reivindicações reveladoras dessa insatisfação. Os oficiais eram brancos, hierarquicamente superiores, educados nas melhores instituições de ensino, pertencentes a famílias abastadas. Seus privilégios e imagens foram corrompidos naquele momento por marinheiros negros, pobres e de parca instrução – 70% eram analfabetos
Em 1911, a maior parte dos envolvidos tinha sido desligada, morta ou fugira.  Anos depois da revolta, os resultados começaram a aparecer. Em 1923, a Escola de Aprendizes da Bahia teve todas as 47 vagas preenchidas rapidamente. No entanto, o oficial comandante dessa instituição começou a reprovar diretamente todos os menores negros, dando lugar aos brancos. Segundo ele, esta era uma seleção “natural”.  Parte dos oficiais, enfim, desejava embranquecer a Armada.
Devido ao racismo na Marinha, negros não poderiam ser oficiais. Mesmo que distantes do oficialato, os marinheiros de 1910 desejaram construir uma nova realidade capaz de alavancar suas carreiras.  Numa cidade onde a disputa por empregos no mercado de trabalho criou e recriou conflitos por nacionalidade, cor e gênero, os amotinados de 1910 tentaram garantir um espaço no qual assegurassem dias mais felizes para suas vidas.
 (Texto adaptado de Álvaro Pereira do Nascimento, Contra a chibata, canhões,  Revista de História, Rio de Janeiro, 2007 em http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/contra-a-chibata-canhoes, acesso em 14/06/2015.)

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Os cortiços e a saúde pública no Rio de Janeiro do século XIX

Ainda nos dias atuais, a palavra “cortiço” é utilizada para nomear habitações coletivas localizadas em casarões, pequenas vilas e sobrados, em que residem diversas famílias sob condições precárias. Geralmente, os banheiros de tais habitações são compartilhados e as condições higiênicas insalubres. Os mais antigos utilizam como sinônimo de “cortiço” a palavra “Cabeça de Porco”. Estalagem. Foto de Augusto Malta, ACGRJ. Barracão de madeira componente da estalagem existente nos fundos dos prédios n. 12 a 44 da Rua do Senado, ano de 1906. Foto de Augusto Malta, ACGRJ. “Cabeça de Porco” era o nome do maior cortiço do Rio de Janeiro em finais do século XIX. Localizado nas proximidades da Estação de Ferro da Central do Brasil, assim se chamava por ostentar um grande portal, em arcada, ornamentado com a figura de uma cabeça de porco. Documentos da época especulavam que este cortiço chegou a abrigar 4 mil pessoas. Em 26 de janeiro de 1893, uma imensa operação de despejo, que ...

As Leis Jim Crow e a segregação institucionalizada nos EUA

"Consistiam as leis Jim Crow em um conjunto de leis que se mantiveram ativas até 1965, com origem nos Estados Confederados da Guerra da Secessão, e que pretendiam promover a divisão igual entre sociedade branca e negra, ou seja, segregação. Em determinados lugares, separavam-se os assentos de ônibus e banheiros, avançando ao apartheid educacional e à proibição do direito ao voto. É no crepúsculo destas leis – e talvez em razão disto – que os movimentos de direitos civis, como os de Martin Luther King e Malcom X, e demandas judiciais, como Brown v. Board of Education, visavam o combate destes segregacionismos." ( PREUSSLER ,Gustavo. Resenha:ALEXANDER,Michelle. A novasegregação: racismoe encarceramentoem massa. São Paulo:Boitempo, 2018, 376p.Argumenta JournalLaw, Jacarezinho – PR,Brasil, n. 29, 2018, p.411-414.) Imagens do tempo da segregação racial nos EUA

Código Criminal de 1890 - A criminalização da cultura dos ex-escravizados

DOS CRIMES CONTRA A SAUDE PUBLICA     Art. 156. Exercer a medicina em qualquer dos seus ramos, a arte dentaria ou a pharmacia; praticar a homeopathia, a dosimetria, o hypnotismo ou magnetismo animal, sem estar habilitado segundo as leis e regulamentos:     Penas - de prisão cellular por um a seis mezes e multa de 100$ a 500$000.     Paragrapho unico. Pelos abusos commettidos no exercicio ilegal da medicina em geral, os seus autores soffrerão, além das penas estabelecidas, as que forem impostas aos crimes a que derem causa.     Art. 157. Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilegios, usar de talismans e cartomancias para despertar sentimentos de odio ou amor, inculcar cura de molestias curaveis ou incuraveis, emfim, para fascinar e subjugar a credulidade publica: DOS VADIOS E CAPOEIRAS     Art. 399. Deixar de exercitar profissão, officio, ou qualquer mister em ...