Carybé, Capoeira (Nanquim sobre papel) |
No
início do século XIX, os capoeiras já eram bastante conhecidos, na cidade do
Rio de Janeiro. No período de 1810 a 1821, entre as 4853 prisões efetivadas
pela polícia nessa cidade, 438 (9%) foram por acusação de prática da capoeira.
Nesse período, os capoeiras formaram grupos e interferiram na relações de poder
no espaço urbano da cidade do Rio de Janeiro, assim como nas relações entre
escravizados e senhores e entre os próprios escravizados. Os praticantes de
capoeira desse período estavam organizados por grupos, chamados de “maltas de
capoeiras”, que tinham como referência os bairros da cidade. Esse modelo de
organização foi relativamente dominante por todo o Brasil. Além da navalha eles
utilizavam sovelões, marimbas e paus como armas em suas contendas de grupo. Sua
práticas não se limitaram aos procedimentos da luta, eles inventaram uma
tradição em torno da capoeira que incluiu nomes e gritos de guerra de cada
grupo.
A
capoeira, criação da cultura escrava no Brasil, criada por africanos e crioulos
(pretos nascidos no Brasil) no ambiente urbano, teve significativo espaço de
atuação nas vilas e cidades do último século da colonização portuguesa. De
forma de resistência aos senhores e ao Estado escravista, passou a ser vista
pela historiografia recente como instrumento de dissuasão dos conflitos
internos dentro da própria camada escrava urbana. De brincadeira gerada em
oposição ao trabalho servil e degradante (vadiagem), passou a ser vista como
elemento indispensável no controle do ambiente da rua feito por escravos e
negros libertos, um verdadeiro poder paralelo, em que vendedores ambulantes e
negros de ganho (escravos que vendiam mercadoria ou serviços no espaço público)
controlavam o comércio informal da cidade colonial.
A
Guerra do Paraguai (1864-1870), maior conflito bélico das Américas no início do
século XIX, fora o início da politização da população de cor dentro da ordem
escravocrata. Para os pretos e pardos pobres, livres e escravos da cidade do
Rio de Janeiro, principais praticantes da capoeira na época, a Guerra se
corporificou nos batalhões recrutadores, que vigiavam as ruas e invadiam as
moradias coletivas em busca de “voluntários” da pátria. Presos, enjaulados,
amarrados, os negros capoeiras eram levados aos montes a vestir as fardas do
exército imperial nos campos do sul. No combate corpo a corpo, os fuzis de
pederneira, carregados pela boca a cada tiro, eram de pouca valia após a
primeira descarga. Os golpes da capoeira, aprendidos nas ruas da distante
cidade do Rio de Janeiro, eram a arma de que se valia o soldado negro ou mulato
brasileiro, não apenas do Rio, mas também de Recife e Salvador. Nos campos da
peleja, os capoeiras forjaram sua lenda.
Após
o fim da Guerra, oficiais que atuaram no conflito e constituíam parte das
elites políticas da cidade perceberam o potencial político dos capoeiras. Era a
época da Flor da Gente, grupo de
capoeira que dominava o bairro da Glória. Arregimentada por um importante
membro do Partido Conservador – Duque-Estrada Teixeira, de tradicional família
política – ela entra nos embates da alta política na eleição de 1872. A golpes
de navalha, rasteira, rabos de arraia e cabeçadas, os capoeiras da Flor da
Gente – veteranos de combates militares no Rio Paraguai – varreram os eleitores
liberais das urnas, e os candidatos opositores dos palanques.
Após
a aprovação, no Parlamento imperial, da Lei do Ventre Livre (1871), com o apoio
da família real, muitos negros começaram a simpatizar com a Monarquia, dentre
eles os capoeiras. Se, nos dias normais, eles estabeleciam seu poder sobre o
espaço da rua, nos dias de eleição atuavam contra os políticos da oposição ao
Partido Conservador, coagindo eleitores e fingindo-se dos ausentes. Durante os
quinze anos seguintes, esta associação entre capoeiras egressos da Guerra do
Paraguai e conservadores manteve-se firme, assim como a simpatia de boa parte
da população negra da cidade do Rio de Janeiro com a Monarquia.
Esse
“Partido Capoeira” expressava interesses imediatos de grupos urbanos
marginalizados e trabalhadores, o repúdio aos políticos mais aferrados ao
sistema escravagista e, também, uma clara identidade racial. Essa é outra
dimensão da Guarda Negra, ainda não trabalhada pelos estudiosos modernos: ela é
a primeira instituição que utiliza o termo negro
no sentido positivo e político da palavra, e autonomeado. Em outras palavras, negro durante séculos foi palavra
fortemente pejorativa, que remetia a escravo, fraqueza, incapacidade de luta,
submissão. Africanos e crioulos ofendiam-se mutuamente no Brasil, chamando-se
de negros. Esse uso tem relação com o
sentido nefasto de “nigger” nos Estados Unidos, até pouco tempo um palavrão no
seio do movimento negro (sic) americano.
Essa
transformação dos significados relaciona-se a superação numérica dos crioulos (descendentes de africanos
nascidos no Brasil) em relação aos africanos, processo ocorrido com o fim do
tráfico de escravizados com o continente africano (1850).
Com
as pancadarias ocasionadas pelo enfrentamento entre as maltas de capoeira e os
republicanos (que no intervalo entre a Guerra do Paraguai e a assinatura da Lei
Áurea ganhara força e muitos adeptos), ganhava o estigma de grupo de
baderneiros, desordeiros pagos pelo regime, “a canalha das ruas” que viviam em
busca de violência e brigas. Esse clima reforçava os pesados estereótipos
raciais que circulavam contra a “raça negra”. Despreparados para o regime de
plena liberdade política, inaugurado em 13 de maio de 1888, deveriam ser
dirimidos pelas forças da ordem policial ou reconduzidos ao trabalho no campo,
sob vigilância do Estado. Os “13 de maio”, como eram chamados os libertos da
Lei Áurea, muito pouco tempo depois da liberdade, já começavam a sentir o peso
das novas limitações impostas pela sociedade “liberal” burguesa.
Dias
após a proclamação da Repúbllica, o generalíssimo Deodoro convocava o advogado
Sampaio Ferraz para assumir a chefia de polícia do Distrito Federal. Ele
imediatamente colocou seus planos em ação. Há tempos Sampaio acompanhava como
promotor público a ação dos capoeiras. Sabia que o fim do regime e a instalação
de um governo provisório ditatorial era o ambiente ideal para dar um fim às
maltas – e, no processo, eliminar os últimos vestígios da Guarda Negra. Em
poucos meses, centenas de capoeiras, em atividade ou “aposentados” (muito
velhos para entrarem em ação), foram presos da forma mais arbitrária.
Encerrados na prisão de Santa Cruz, foram jogados em um vapor e mandados para
Fernando de Noronha, a ilha prisão do governo federal.
Em
menos de um ano, Sampaio tinha dado cabo dos últimos vestígios do Partido
Capoeira e, de sobra, da Guarda Negra. Em outubro, era publicado o novo código
criminal da República, tornando a capoeira crime.
Bibliografia:
PIRES, Antonio Liberac
Cardoso Simões, Capoeira é ataque,
defesa, ginga de corpo e malandragem, disponível em http://www.geocities.ws/capoeiranomade4/revista14-mat7.pdf.)
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